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Recomendo mesmo que leiam...

a mesa de cafe

Desculpem insistir, mas é que Umberto Eco é simplesmente... fenomenal; este excerto está, para mim, sublime. Mostra aquilo que penso sobre aquelas acções de solidariedade do género “caixote-de-cartão-debaixo-da-árvore-de-Natal”, em que todo o bom cristão/ cristã deposita os sapatos mais velhos e gastos, os brinquedos mais partidos que consegue encontrar em casa. Para mim, solidariedade está longe de passar por isto. A solidariedade exige sacrifícios nossos, não a nossa comodidade. Bem, e esta atitude do professor faz-me lembrar um(a) ex-professor(a) bem conhecido(a), que procederia exactamente da mesma maneira, e que trata os alunos precisamente desta forma, porém obviamente mais moderado(a). Reparem bem nas frases sublinhadas. Quem já percebeu a quem me refiro, veja se não encaixam completamente no perfil da peça…

“(…)O Bruno tinha a bata preta rasgada, não tinha o colarinho branco, ou, quando o tinha, estava sujo e puído e, naturalmente, não tinha o laçarote azul como os meninos «bem». Tinha crostas, por isso estava rapado à máquina zero, o único tratamento que a família conhecia, também contra os piolhos, e viam-se-lhe as manchas brancas das crostas já saradas. Estigmas de inferioridade.
O professor era essencialmente um bom homem, mas, como tinha sido membro dos esquadrões fascistas, sentia-se obrigado a educar-nos de forma viril e pregava valentes bofetadas. Mas nunca a mim e a De Caroli, pois sabia que iríamos dizer aos nossos pais, que eram seus pares (…) e porque a minha mãe era prima de uma directora pedagógica.
Para o Bruno, pelo contrário, as bofetadas eram diárias (…) e acabava sempre atrás do quadro, prestando-se ao ridículo.
Um dia, o Bruno chegou às aulas depois de uma falta injustificada e, enquanto o professor já estava a arregaçar as mangas, desatou a chorar e, por entre as lágrimas, deixou entender que o pai tinha morrido. O professor comoveu-se, pois os membros dos esquadrões fascistas também tinham coração. Naturalmente, encarava a justiça social como caridade e pediu-nos para fazermos um peditório. Também os nossos pais deviam ter bom coração, pois no dia seguinte cada um voltou com algumas moedas, umas roupas velhas, um frasco de doce de fruta, um quilo de pão. O Bruno teve o seu momento de solidariedade.
Mas, na mesma manhã, durante a marcha no quintal, começou a andar de gatas, e todos pensámos que devia ser mesmo mau para se portar daquela maneira depois da morte do pai. O professor disse-lhe a gritar que não tinha o mais elementar sentido de gratidão.
(…) Diante o Bruno a andar de gatas, percebi que aquilo era um sobressalto de dignidade, uma forma de reagir à humilhação que a nossa generosidade mórbida lhe tinha infligido.
Percebi isso ainda melhor uns dias mais tarde, numa daquelas concentrações do sábado fascista, em que estávamos todos alinhados, de farda, a nossa impecável, a do Bruno como a bata de todos os dias, com o lenço mal atado, e tínhamos de pronunciar o Juramento. O centurião dizia: «em nome de Deus e da Itália, juro cumprir as ordens do Duce e servir com todas as minhas forças e, se for necessário, com o meu sangue, a causa da revolução fascista. Jurais?» E todos deveríamos responder: «Juro!». Enquanto todos gritávamos «Juro!» o Bruno – que estava ao meu lado, e que ouvi perfeitamente – gritou «Furo!» Revoltou-se. Foi a primeira vez que assisti a um acto de revolta.
Ter-se-á revoltado por iniciativa própria ou porque tinha um pai bêbado e socialista (…)? Mas agora percebo que o Bruno foi o primeiro que me ensinou como reagir à retórica que nos sufocava.
Entre a redacção dos dez anos e a crónica dos onze, no fim da escola primária, tinha sido transformado pela lição do Bruno. Anarquista revolucionário ele, apenas céptico eu, o seu Furo passou a ser o meu copo inquebrável* (…)”.

*Nota: Para ficarem a saber o que é o copo inquebrável a que Eco se refere, leiam “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”. Não teria sentido explicar aqui.

Gostei muito. E nunca tinha lido nada dele, embora o conhecesse de nome. É um autor a pesquisar. ;) Obrigado.

Eu também gosto bastante do Umberto Eco (por algum motivo, escrevo n'A Ilha do Dia Antes). Eu descobri-o com Baudolino que continua a ser dos meus preferidos (para quem acha graça à moda do Código da Vinci há o Pêndulo de Foucalt, muito superior, aliás). O último romance mantém a qualidade dos anteriores, porém, tem tantas referências (óptimas!) que tenho pena de não ter vivido a minha infância na Itália na década de 40 já que isso era condição essencial para apreciar todas elas.
Sugiro, aliás, a leitura do Diário Mínimo (o primeiro e o segundo, um mais que o outro... agora não me lembro qual, tenho que ver isso) porque reune textos dele publicados numa coluna de um jornal e são, na sua maioria, humorados e muito bem escritos.

Pedro

Ahhh! E Umberto Eco é de esquerda! ;-)
Tem outro encanto, não tem?

Pedro

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