Antes de mais, deixa-me apenas felicitar-te pelo texto. Li-o de uma ponta à outra. Sendo tão raros estes momentos em que abordas de forma lúcida, séria e consciente determinado assunto, seria desperdiçar uma boa oportunidade de debate não responder. Seria, aliás, pouco provável que não o fizesse, fosse este sobre que assunto fosse; sendo este, não poderia mesmo deixar de o fazer.
Não posso deixar de reparar que finalmente decidiste dedicar umas horas à política (à política à sério - deixemos os nossos
amigos das Concelhias por agora). Abstendo-me de uma possível condenação desta instrumentalização da coisa, é bom ver que, pelo menos, abandonaste as ideias anarco-conservadoras e percebeste que quem manda realmente nisto, para o bem ou para o mal, não somos nós, mas sim um órgão devidamente legitimado para o efeito, que (repito: para o bem e para o mal) é capaz de decidir sobre questões que nos tocam no âmago. Como esta, por exemplo.
Pois bem, o aborrecido da coisa é que, por uma questão de coerência e honestidade, acabaste de assumir um compromisso do qual já não te podes libertar, pelo menos nuns tempos próximos: no caso de o
não ganhar, vais ter que continuar a bater-te por questões como “educação sexual nas escolas, divulgação e responsabilização para a prática sexual, uso de métodos contraceptivos, acompanhamento de mães solteiras, apoio empenhado de grávidas em risco, aplicação rigorosamente acompanhada da pílula abortiva a mulheres vítimas de violações, reforço da lei conjugal, facilidade de regime de adopção para casais heterossexuais com condições para acolher crianças (...)”, tudo questões,
et voilá... políticas. Disse “no caso de o não ganhar”, mas acredito que o devas fazer mesmo que o
sim ganhe, da mesma maneira que eu o farei. Ou seja, se contavas
lavar as mãos mal este
pesadelo acabasse e deixar na toalha os resquícios do activismo político...
think again, porque vinculaste-te a ele sem sequer dares conta. Não esperas que a “facilidade de regime de adopção para casais heterossexuais com condições para acolher crianças” seja obra do Arcebispo de Braga, pois não?
E é aqui que vai por água abaixo o teu argumento de que esta questão não passa pela política, pelos partidos, pela esquerda e pela direita. Nada mais errado: passa e muito. Vejo, pela primeira vez, muito boa gente que costuma passear pelo CDS a falar em coisas como “métodos contraceptivos” e “educação sexual”. Ora, não costumam ser estes seres que aplaudem os discursos em que o Santo Papa apela ao não uso do preservativo? E que ficam calados em matérias como a educação sexual nas escolas, e mesmo em relação a tantos outros relacionados com este? Sim, são. E para eles só encontro uma palavra:
hipócritas. É mais ou menos esta a gente que integra as “não obrigadas”. Resta saber de onde vem a “obrigação”: parece-me que o patrão terá de ter um olhar de lince para detectar um feto com 34 – 42mm (é o que costuma medir um feto com 10 semanas) na barriga de uma sua licenciosa empregada. Mas deixemos isto. O que é realmente interessante aqui é ver como, de repente, os partidos e as pessoas de direita passaram a aplaudir tudo o que está relacionado com prevenção. Porque até aqui nem o problema se colocava. Era preferível acreditar que os jovens
não andavam a ter relações (diria o Nuno Melo: “
não deveriam andar a ter, de qualquer das maneiras”). E até nem havia grande problema: se as coisas corressem mal iam a Espanha, ou davam o petiz para adopção (não é de espantar que se importem tanto com estas instituições). Toda esta harmonia parece esvair-se quando, de repente, chegam os
genocidas de esquerda, prontos para mudar uma lei que, em primeiro, não funciona, porque ninguém deixa de abortar por a lei não permitir – a diferença é que se tem 500€ vai dar um passeio a Vigo ou a Badajoz; se não tem vai dar um passeio a um vão de escada; em segundo, é injusta, porque condena apenas mulheres, quando a responsabilidade civil/ criminal devia ser repartida – o que parece não incomodar ninguém que defende o
não, para alem de ti; em terceiro, é (igualmente) dispendiosa para o Estado, porque financia julgamentos, advogados, magistrados, despesas administrativas e cuidados de saúde para mulheres que abortam em más condições (nota: estou a utilizar os termos
direita e
esquerda para diferenciar concepções político-sociais; poupemo-nos ao esforço de tentar imputar este estatuto aos actuais partidos). Esclarecida a forma como a política toca esta matéria, avancemos.
A pergunta não é inocente, mas é clara:
“concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez se realizada, por opção da mulher nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Se respondermos sim, não estamos a pronunciar-nos a favor da liberalização do aborto (visto que este continua a ser permitido
apenas em circunstâncias
taxativamente previstas, ou seja, com inúmeras restrições), mas sim contra: 1) a prisão da mulher, (até três anos), depois de esta já ter passado pela violência física e psíquica de um aborto clandestino; 2) a existência, por ano, em Portugal, de 18 mil abortos clandestinos e de centenas de mulheres com graves complicações pós-abortivas (obrigado
A. Belo). Para alem do que já referi em cima, é também por isto que vota o
sim (ou pelo menos
algum sim).
Gosto especialmente da crença que se instalou de que, de um momento para o outro, o dinheiro investido em clínicas de aborto poderia ser canalizado para a sua prevenção. Sim, os privados, num acto de generosidade, vão mesmo abdicar dos seus investimentos e passar a preocupar-se com o
bem comum. Está-se mesmo a ver. E o pior é que não há maneira de os obrigar. O curioso é que esta espécie de crença soa demasiado a... neoliberalismo?
Como já te disse, aborrece-me mais que os espanhóis atafulhem os nossos jornais com anúncios à “Clínica dos Arcos” do que montem cá as nossas clínicas. Se querem o nosso dinheiro dêem-nos trabalho. A privatização de um serviço como este só me aborrece a partir do momento em que o Estado deixa de o realizar a um preço baixo, concertado. Assim: venham as clínicas – nem é difícil de imaginar a clientela: jovens de 19/ 20 anos que estudam no S. João de Brito ou na U. Católica, provavelmente com apelidos com muitos
“elles” e
“ypslons”. Sim, porque não me parece que quem vá recorrer a elas sejam as pessoas que realmente necessitam deste serviço, talvez porque... não o possam pagar numa clínica privada. E são estas que são aqui chamadas.
Para acabar, que isto já vai longo, deixa-me apenas dizer que o que está aqui em causa não é propriamente
pragmatismo e fascínio pelo fácil.
Fácil!? Abortar parece-te uma decisão...
fácil!?
Claro que não é. E como já disse dezenas de vezes, sou a favor de todas essas medidas para dissuadir a mulher de abortar. Sou a favor, aliás, de um conjunto de medidas complementares de acompanhamento das mulheres que abortam. A questão é que mesmo depois de fornecidas as “condições de apoio social, assistência a mães solteiras e acompanhamento, sistemas de protecção e acompanhamento psicológico e médico a grávidas de risco e leis de responsabilização conjugal” acho que a última palavra deve ser... da mulher/ do casal. E é por isso que
voto SIM.
P.S.: este post teve como finalidade (tentar) responder-te. Queria ver se fazia uma coisa mais elaborada ainda a tempo do referendo, o que não me parece nada fácil, tendo em conta a altura (devia estar a preocupar-me mais com
regimes de interdição e afins)...